A cura pela realidade virtual

Como a nova medicina avatar está se transformando em eficaz recurso da medicina para tratar males como dor, fobias, anorexia e estresse, entre outros problemas de saúde

 
Trocar o divã por computador e óculos de 3D. Levar jogos para a enfermaria dos hospitais. Usar esquemas tridimensionais no treinamento de estudantes de medicina para a realização de procedimentos delicados. Esses são apenas alguns exemplos de uma revolução em curso e que promete mudar radicalmente a rotina de clínicas e instituições hospitalares do mundo: o uso de realidade virtual no cuidado com a saúde física e mental. Está se falando aqui da utilização, na esfera médica, da mesma tecnologia que proporciona ao espectador de um filme 3D, por exemplo, a sensação de estar dentro da cena. No cinema, o recurso diverte e encanta. Na medicina, está ajudando a curar males que vão de fobias a labirintite.
O princípio é expor o paciente, no plano virtual, a situações semelhantes àquelas que, na vida real, de alguma maneira, impedem sua recuperação. Dessa forma, o indivíduo é submetido a uma espécie de treino. Quando se depara, no cotidiano, com o obstáculo, torna-se capaz de saltá-lo.
Para fazer o paciente mergulhar na realidade virtual são usados os óculos ou capacetes de 3D (que garantem a sensação de imersão no cenário) ou grandes telas, nas quais são projetadas as animações. A interação também varia. A pessoa pode tanto ser exposta a uma cena predeterminada quanto ter o comando total da situação.

ESTRESSE
Sistema criado por Christian trata bancários vítimas de assaltos.
À dir., cenário virtual de agência de banco vista pelo paciente
   FONTE: IstoÉ
É o que acontece, por exemplo, no jogo SnowWorld, criado pelos cientistas Hunter Hoffman e David Patterson, da Universidade de Washington (EUA). Com capacete de realidade virtual, o jogador lança bolas de neve e caminha por um cenário branco e gelado. A primeira impressão pode ser a de que o game serve só para a diversão. Mas ele beneficia pacientes queimados e é utilizado durante a troca das bandagens – parte muito dolorosa do tratamento. Os pesquisadores descobriram que a imersão em um universo virtual formado por gelo altera a percepção da dor, reduzindo-a. “Quando a pessoa joga, há menor ativação das áreas relacionadas à dor”, disse Hoffman à ISTOÉ.
O sucesso do jogo é comprovado em oito centros americanos de tratamento. E há ensaios clínicos com a ferramenta em Israel e na Holanda. Em breve, eles acontecerão no Brasil. A previsão é de que os bonecos de neve cheguem ao País no segundo semestre, em um estudo capitaneado pelo Pronto Socorro para Queimaduras do Instituto Nelson Picolo, de Goiânia. “A ideia é aplicar a terapia em 200 pacientes”, diz Ricardo Daher, coordenador de pesquisas.
Tratar a dor por meio de realidade virtual é algo recente, surgido a partir de experiências com outras enfermidades. Os primeiros distúrbios a ganhar essas terapias foram as fobias. O medo irracional de voar e de aranhas, entre outros, é um distúrbio de ansiedade razoavelmente comum – só a fobia social, o temor de se expor em público, afeta cerca de 13% da população – e contra o qual são usados vários recursos. Muitos são baseados na exposição gradual do indivíduo ao objeto que lhe causa pavor. Com a terapia virtual, essa estratégia ganhou eficácia surpreendente. Nos EUA, pessoas com fobia social estão conseguindo se destravar graças a um programa no qual elas se veem diante de uma plateia que reage como se fosse de verdade: nem todos prestam atenção, há os que se levantam durante a palestra e outros que aparentam inquietude. O treino, com duração de 15 a 20 minutos, ajuda o paciente a manter a calma e falar melhor.
INTERAÇÃO
Paciente com pavor de aranha vê a imagem do animal pelos óculos
e tem a sensação tátil ao passar a mão em uma tarântula de brinquedo

No Rio de Janeiro, pesquisadores das universidades federal e estadual criaram uma opção para o tratamento de indivíduos que têm fobia de lugares cheios. Um primeiro filme foi feito com cenas de um ônibus – que lota e fica preso no congestionamento dentro de um túnel. “Esse cenário foi usado para medir se a exposição virtual provocava reações nos doentes”, conta Rafael Freire, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Animados com o resultado, o grupo agora trabalha em outro programa, que terá o metrô como ambiente virtual.
Entre as fobias, uma das que tem merecido muita atenção é o medo de avião. O contador Marlon Beims, 41 anos, venceu o temor após quatro sessões com a tecnologia, aplicada em um consultório de Curitiba. “Fiz uma viagem para o Peru, em um voo com turbulências, e não me senti mal.” No tratamento, ao colocar os óculos ele se deparava com diversas situações de voo: de dia, de noite, com bom tempo, com chuva, durante pousos ou decolagens.
Fobias de animais são outro gênero contemplado pelo auxílio da realidade virtual. Um dos experimentos pioneiros foi feito nos EUA com uma mulher que tinha pavor de aranha. Após 12 sessões semanais, ela conseguiu segurar uma tarântula em suas mãos sem perder o controle. Esse estudo desencadeou outros, também com aracnídeos, e encorajou a criação de alternativas para mais animais, como as baratas.
Os bons resultados também inspiraram a formulação de alternativas contra outros transtornos psiquiátricos. Hoffman e Patterson, da Universidade de Washington, autores do recurso que alivia a dor de pessoas queimadas, produziram versões que começam a ser utilizadas no tratamento de estresse pós-traumático. Como o nome diz, o distúrbio surge após a ocorrência de eventos traumáticos, como sequestros ou participação em guerras. Presa à lembrança da situação, a pessoa tem enorme dificuldade de seguir adiante. Sofre com pesadelos e muitas vezes tem medo até de sair de casa.
DINÂMICO
Alan aprimora os movimentos da mão. Quando ele toca nos cartões da
mesa, cartões correspondentes na tela do computador emitem sons

Para auxiliar esses indivíduos, a dupla de americanos fabricou vários ambientes virtuais. Entre eles, um que reproduz o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, em Nova York, e outro que tem como pano de fundo a guerra do Iraque. O primeiro é usado em pessoas que vivenciaram o atentado e o segundo, por soldados que lutaram em território iraquiano. Em Portugal, na Universidade Lusófona, em Lisboa, ex-soldados também são tratados por meio da realidade virtual. O objetivo, nesses casos, é usar a tecnologia para reavivar as memórias dos eventos desencadeadores do trauma. “Isso facilita o trabalho do terapeuta”, explicou à ISTOÉ Pedro Gamito, coordenador da pesquisa portuguesa.
Na PUC do Rio Grande do Sul, os beneficiados são bancários que foram vítimas de assaltos às agências onde trabalham. Em seis sessões com realidade virtual – de um total de 18 – o paciente é exposto à rotina de trabalho em um banco. Ele interage com clientes e, em determinado momento, vê a agência ser invadida por bandidos armados. “À medida que essa cena se repete ao longo das exposições, o paciente vai aprendendo a controlar sua ansiedade”, diz o psicólogo Christian Kristensen. Por meio do monitoramento da frequência cardíaca e da condutividade da pele – dois indicadores do nível de ansiedade – o terapeuta mede a evolução de seu paciente, que, desse modo, fica sabendo quando, exatamente, começa a perder o controle.
Esse conhecimento ajuda a ambos identificar com precisão os pontos que precisam ser mais trabalhados e, para o doente, aprimorar o autocontrole. Afinal, ele pode ver como a aplicação de uma técnica de respiração em um momento de maior ansiedade, por exemplo, pode baixar sua frequência cardíaca e frear o sentimento. É um feedback que ele tem na hora, em tempo real. Quando estiver diante de um momento semelhante, na vida real, reconhecerá mais facilmente o que está acontecendo e aplicará o antídoto que aprendeu nas sessões de realidade virtual.
Uma experiência feita na Espanha ilustra a eficácia desse mecanismo com perfeição. Em Barcelona, médicos do Hospital de Bellvitge reuniram portadores de transtornos alimentares, como anorexia e bulimia, e viciados em jogos. Esses dois distúrbios têm raiz em uma tremenda dificuldade de controlar a ansiedade. Sem domá-la, a pessoa recusa-se a comer por medo de engordar, caso da anorexia, come e provoca o vômito por causa do mesmo temor, caso da bulimia, ou cede ao impulso do jogo.
AVATAR
Para perder o medo de falar em público, o paciente cria um personagem virtual.
Por meio dele, aos poucos supera o pânico de se expor
 No game espanhol, o paciente é obrigado a vencer o sentimento. Ele recebe tarefas que deve cumprir para sair de uma ilha. Enquanto joga, é monitorado por sensores que controlam reações como batimentos cardíacos e variações na expressão facial e na voz. Quando o nervosismo fica muito forte, o paciente enxerga como isso influencia sua resposta corporal (há aumento de batimentos e produção excessiva de suor, por exemplo). Nesses momentos, ele é enviado a uma zona de relaxamento, onde deve respirar profundamente até se acalmar. Somente quando isso ocorre ele pode ir em frente. “O jogo ajuda o paciente a entender como seu corpo reage”, disse à ISTOÉ Fernando Aranda, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo. “E exige que ele aprenda a resolver problemas, controle impulsos, enfrente frustrações e administre emoções.”
EQUILÍBRIO
Juliana não conseguia andar de carro ou de ônibus porque passava mal.
Após dez sessões com o método, já é capaz de passear
de automóvel pelas ruas de São Paulo sem sofrer

 Em outra proposta, também espanhola, a portadora de transtorno alimentar é confrontada com o abismo existente entre o modo como se enxerga e seu corpo real. No sistema, produzido na Universidade de Valência, a paciente molda a figura de um corpo aplicando-lhe as medidas que imagina serem as suas. Em seguida, vê a comparação entre duas imagens: a que criou e outra, com seu corpo real. “Essa ferramenta auxilia terapeuta e paciente a visualizar a distorção de imagem corporal”, diz Cristina Botella, coordenadora da experiência. “E o resultado é uma melhora na maneira como a paciente se vê”, disse à ISTOÉ a psicóloga Pilar del Moral, que estudou a eficácia do programa em 24 voluntárias, durante um ano. 

Na Universidade do Sul da Califórnia (EUA), o método tem outro objetivo. Jonathan Gratch, do Departamento de Ciências da Computação, e sua equipe estão testando o SimCoach. Trata-se de um programa com a chamada inteligência artificial: personagens virtuais com feições e reações humanas atuam como ajudantes dos terapeutas. Fazem perguntas e reagem quando o paciente, a sua frente, muda de posição ou se cala. Por meio das respostas, detectam sinais de possíveis problemas em seu interlocutor – como tendências suicidas ou abuso de drogas. Quando isso acontece, a pessoa é aconselhada a buscar ajuda médica. Uma das vantagens da ferramenta é que não se fala diretamente com o terapeuta. “Os indivíduos ficam mais dispostos a revelar situações delicadas ao terapeuta virtual”, disse Gratch à ISTOÉ.
VIAGEM
Após o uso da técnica, Marlon se sentiu fortalecido para entrar em um
avião. Já foi até o Peru, enfrentou turbulência, mas não teve medo

A reabilitação motora também tem se beneficiado dessas tecnologias. Nos EUA, o serviço hospitalar Beth Abraham adotou jogos virtuais na fisioterapia. Os pacientes são posicionados em frente a grandes telas de tevê, nas quais se vêem projetados. Uma câmera capta os seus movimentos, que servem de comando para o game. “O doente se diverte e se sente incentivado a realizar a fisioterapia”, falou à ISTOÉ Randy Palmaira, diretor da instituição.
No Brasil, as potencialidades da terapia virtual despertaram o interesse da engenheira Ana Grasielle Corrêa. Ela desenvolveu o Gen Virtual. No game, cartões de realidade aumentada produzem sons de instrumentos variados quando a pessoa passa o dedo sobre eles. O paciente pode brincar de jogo de memória ou tocar as melodias que aparecem na tela. Os movimentos que realiza durante a brincadeira são semelhantes aos dos exercícios fisioterápicos. “Mas no jogo virtual os pacientes se sentem mais motivados”, diz Ana. Em sua primeira sessão com o game, Alan Cordeiro, 19 anos, aprovou o recurso. O jovem tem distrofia muscular e já perdeu parte de seus movimentos. “É divertido fazer as atividades.”
APERTO
No Rio de Janeiro, a equipe de Rafael Freire aplica um programa contra fobia de lugares fechados.
Na tela, o paciente experimenta a sensação de estar dentro de um ônibus


Na Universidade Federal de São Paulo, os aparelhos estão contribuindo para a cura de distúrbios como labirintite e cinetose – doença na qual a pessoa se sente enjoada em meios de transporte. Nesses casos, a tecnologia obriga as pessoas a reencontrar o controle sobre o equilíbrio corporal. Dez sessões ajudaram Juliana Chaubet, 23 anos, a superar a cinetose. “Em uma hora de ônibus, da faculdade para a minha casa, passava mal”, lembra. “Desde a terapia, não tive mais problemas.”
Para o futuro, os especialistas apostam em uma intensa disseminação, na medicina, deste novo recurso. “Há novas descobertas a cada dia”, disse à ISTOÉ Greg Burdea, da Universidade de Rutgers (EUA) e criador do termo reabilitação virtual – hoje usado para tratar de todas as terapias com uso da tecnologia.

Rachel Costa

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