Coleira para criança, berço para cachorro

Na última semana, tão fortemente marcada pela dor dos japoneses e pelas tentativas de evitar um desastre nuclear, uma notícia menor, à primeira vista sem maiores consequências, também mexeu comigo. Em reportagem publicada na Folha de S. Paulo, Mariana Versolato descreve a mais nova onda entre as mães de crianças pequenas: colocar os filhos na coleira.
A guia para conter crianças é mais uma invenção neurótica importada dos Estados Unidos. Ela começa a ganhar adeptas nas ruas, nos shoppings centers, nos aeroportos brasileiros. O argumento para usá-la, tipicamente americano, é a garantia de conforto e segurança. A coleira não é colocada no pescoço. É um objeto de repressão travestido de acessório fofinho e infantil. A criança coloca uma mochilinha nas costas (alguns modelos vêm com um bichinho de pelúcia acoplado). Da mochila sai uma cordinha que a mãe segura para evitar que a criança se afaste demais. Como os cachorros espoletas, as crianças amarradas à coleira arrastam as mães.
Ainda não vi essa cena, mas posso imaginar o quanto de bizarrice há nela. Um garoto correndo pelo shopping obriga a mãe a dar pinotes enquanto ela grita, em vão: “Pare. Não corra. Aqui não. Eu disse para parar”. Se a mãe não consegue controlar o filho sem coleira porque ele deveria obedecê-la justamente na hora em que a situação parece perseguição de desenho animado? Imagino que a criança só poderia dizer: “De novo. Mais rápido. Outra vez”. E a cara da mãe quando o shopping inteiro comentar o vexame? Como dizem as meninas de 20 anos, isso “é muito vergonha alheia”. Mico total.
A vergonha é o que menos interessa nessa história. O que está implícito na decisão de comprar uma coleira? Os pais querem ter comodidade para olhar outras coisas sem se preocupar se os filhos estão por perto? É recurso para quem não consegue estabelecer limites? “A coleira é um instrumento ideal para quem não sabe dizer o que pode e o que não pode”, diz a psicoterapeuta Maria Teresa Lago. Se tivessem construído a autoridade que precisam ter, bastaria que os pais dissessem ‘não corra’, ‘fique quieto’, ‘aqui não é lugar para isso’. Essa autoridade é desafiada pelas crianças o tempo todo, mas é o tipo de embate do qual não se pode abrir mão. Dele depende a formação de um cidadão que aprende o que é aceitável e o que não é.
Segurar na mão da criança não seria mais simples, barato e natural? “Não pegamos os filhos pela mão só por pegar”, diz Maria Teresa. “Fazer isso é uma tentativa de tê-los conosco no sentido afetuoso da coisa.” A segurança que a mão do pai ou da mãe nos dá é um patrimônio emocional que não deve ser desprezado. Quem teve pai e mãe desempenhando seu verdadeiro papel provavelmente vai se lembrar, décadas depois, da mão que conduzia à sorveteria numa tarde de domingo ou que ajudava a atravessar a rua movimentada num dia cinza.
Enquanto o contato entre pais e filhos é substituído pela coleira, os cachorros ocupam o espaço que até há pouco tempo era exclusivo das crianças. A tentativa de humanizar os animais é estimulada pelo lançamento de produtos que - se não fossem tão pequenos -- poderiam ser vendidos em lojas de produtos para bebês. Há berço e carrinho de passeio para o pet que ganha nome de criança. A dona o chama, sem o menor constrangimento, de filhinho. “O cachorro é um prato feito para quem precisa ter uma garantia na relação.”, afirma Maria Teresa. “A garantia de afeto é total: quando o dono chega em casa o cachorro sempre vai pular no colo.”
Não vejo nenhum problema no amor destinado aos animais. Mas quem gosta deles deve amá-los pelo que são. Cachorro tem que ser amado como cachorro. Gato como gato. E não como o filho que não existiu ou que se foi. Ao tentar humanizar os bichos, os donos produzem aberrações. Sinto pena do cão quando o vejo vestido com roupinhas, enfeites de cabeça e outras peruices que o transformam numa cópia desajeitada da dona. Fico mais aflita ainda quando percebo que sofreram intervenções radicais ao bel-prazer dos donos.
Como se não bastasse cortar as unhas e arrancar as sobrancelhas dos bichos, chegam ao cúmulo de castigá-los pelos latidos. Vi na internet uma coleira antilatido que me deixou assustada. Ela funciona por meio do condicionamento pavloviano clássico. Quando o cachorro late, a coleira emite um sinal sonoro. Se ele latir outra vez nos trinta segundos seguintes, o aparelho apita e o coitado recebe um choque suave. A cada latido adicional, o choque se intensifica até ficar cinco vezes mais forte que o primeiro.
O cão é condicionado a ficar calado, aprende a não exibir nenhum sinal revelador de sua natureza. Os bem comportados ganham comida e afagos. E, dependendo do gosto e do exibicionismo da dona, ganha também uma coleira Louis Vuitton. “Vi num shopping do Leblon um cachorro que exalava perfume e tinha o pelo mais brilhante que o cabelo da dona. Ficava solto, deitado ao lado dela como se fosse uma criança”, diz Maria Teresa. “A humanização dos bichos é patológica, mas parece que ninguém reflete sobre isso.”
O mundo me espanta, me surpreende. Tenho mania de observar e refletir sobre pequenos sinais que parecem não dizer nada, mas que podem significar muito. Inversões de papéis me intrigam. Assim como invenções estranhas que prometem comodidade e vão se imiscuindo na nossa vida até parecer absolutante normais. Alguma coisa está fora do lugar quando colocamos a criança na coleira e o cachorro no berço.

Fonte: Época
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras

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