Com os pés no chão

Desde que o americano Christopher McDougall lançou o livro Nascido para correr (Editora Globo, 2010), a ideia de correr descalço ganhou o mundo. McDougall fisgou seus leitores com bons argumentos sobre os supostos malefícios dos tênis caros – e os benefícios de livrar-se deles. O jornalista garante que correr descalço evita lesões, ao contrário do que a indústria de calçados faz crer.
McDougall colecionou estudos científicos importantes, entrevistou treinadores de corrida e apresentou ao leitor os tarahumaras, indígenas do norte do México que correm supermaratonas em tempo recorde usando sandálias de solas de pneu. Ele experimentou tudo o que descreveu e concluiu que correr errado lhe causava lesões – e que os tênis supertecnológicos não estavam protegendo nada.
A adesão foi forte. Leitores entusiasmados elegeram o autor como guru e saíram para correr de pés no chão – nos Estados Unidos, primeiro, e logo no resto do mundo, inclusive no Brasil. “Eu corro descalço há cinco anos, e a dor que eu tinha na canela desapareceu”, afirma Leonardo Litorati, de 43 anos, que mora em Belo Horizonte. Ele já disputou duas maratonas descalço, com intervalo de três semanas entre elas.
As diferenças entre correr com tênis e correr descalço vêm sendo pesquisadas nas últimas quatro décadas. Já se observou como o solado interfere no movimento da pisada e em que medida o calçado determina qual parte do pé toca primeiro no solo. Uma das constatações dos estudos é simples: com tênis, tendemos a bater os calcanhares no chão, ao passo que, descalços, aterrissamos no solo com a parte da frente do pé, justamente para proteger os calcanhares. É um movimento intuitivo. A pisada frontal é considerada mais eficiente entre os corredores de elite, que, segundo as pesquisas, sofrem menos lesões. Ainda assim especialistas ouvidos por ÉPOCA dizem que os estudos não permitem afirmar categoricamente que a pisada frontal e descalça é melhor para prevenir lesões.
Em janeiro de 2010, a respeitada revista científica Nature publicou um estudo que reforçou a tese de que os tênis de corrida com calcanhar reforçado favorecem a pisada de calcanhar. O antropólogo Daniel Lieberman, da Universidade Harvard, mediu as forças de impacto na corrida de adolescentes quenianos que nunca haviam corrido calçados. Eles pisavam o solo com o chamado antepé, formado por metatarso e dedos. Mas, uma vez calçados com tênis com amortecimento, tendiam a bater os calcanhares no chão. Lieberman não afirma que os tênis favorecem as lesões, mas deixou claro que eles modificaram a técnica de corrida de adolescentes acostumados desde cedo a correr descalços. A indústria tem suas explicações. “O amortecimento ajuda no conforto do atleta e na performance”, afirma Mário Andrada, diretor de comunicação da Nike na América Latina. “Serve para prevenir lesões especialmente em percursos longos e com piso irregular.” ÉPOCA pediu à empresa estudos que mostrassem a eficácia dos tênis de corrida em prevenir lesões, mas a empresa não respondeu. Em seu livro, McDougall diz que esses estudos não existem. 

GammaKeystone/Getty Images
CAMPEÃO
O etíope Abebe Bikila, que venceu a maratona dos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960. Ele é referência para os descalços
Na visão dos descalços apaixonados (alguns dos quais mantêm blogs sobre o tema), os calçados com amortecimento são muletas que atrofiam a poderosa e complexa musculatura dos pés, desenvolvida em milhões de anos de evolução. Há quem compare correr com calçados de solado grosso a digitar um teclado de computador usando luvas: perde-se inteiramente a sensibilidade. Mas não foi bem isso que o artigo de capa da Nature mostrou. Para os especialistas, ele colocou uma pergunta relevante: correr sem amortecedores seria possível se fôssemos acostumados desde criança a brincar descalços?
Os quenianos do estudo de Lieberman e os índios mexicanos do livro de McDougall têm em comum o fato de viver sem tênis. A maioria dos moradores das cidades não tem esse hábito no currículo. Crescemos acostumados a pisar no chão com uma camada de borracha e tecido macio intermediando o impacto. Para os especialistas em lesões ortopédicas, é o hábito que faz a diferença na capacidade de correr sem se machucar, com ou sem tênis. “É basicamente da adaptação que depende a necessidade que teremos do calçado”, afirma Julio Cerca Serrão, coordenador do Laboratório de Biomecânica da Universidade de São Paulo (USP). “O tênis não é o protagonista da proteção. Quem tem tempo para se adaptar pode se dar bem sem ele.” De olho no crescente interesse por experimentações desse tipo, a indústria de calçados se mobilizou. Os tênis de corrida com solado mais fino e maleável começaram a aparecer nas lojas, prometendo mimetizar a pisada descalça. As “luvas para os pés” da italiana Vibram – sapatilhas esportivas conhecidas como Five Fingers – tornaram-se o produto preferido dos novos corredores descalços. Até as sandálias artesanais dos tarahumaras ganharam destaque, com vídeos na internet ensinando a confeccioná-las (leia o quadro abaixo).
Inspirados por McDougall, muitos resolveram largar os tênis de uma hora para outra, como fez o paulista Joel Leitão. Praticante de corrida há três anos e meio, Leitão conta que, depois de ler o livro, convenceu-se de que poderia correr descalço. Fez o teste no Parque da Aclimação, em São Paulo, começando com um treino de 6 quilômetros, muito mais do que os blogueiros recomendam (não mais que 500 metros no primeiro dia). Uma semana depois, fez 10 quilômetros descalço. A terceira vez foi meia maratona na areia da praia. “Fiz meu melhor tempo nessa distância”, afirma Leitão, que ganhou duas bolhas de sangue nos pés. No balanço da ciência, é impossível concluir se os tênis de corrida são fundamentais, como sugere a indústria, ou se todos ficariam melhor descalços, como dizem os radicais da corrida natural. Mais do que nunca, vale a cautela e a experimentação. A proteção dos pés não é uma questão de moda. 


Fonte: Revista Época por Francine Lima e Luciana Vicária

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